O desejo de pertencer: como a necessidade humana de aceitação pode levar à escolha de grupos perigosos

O ser humano nasce, vive e morre em rede. Desde os primeiros segundos de vida, nosso bem-estar está entrelaçado com a presença do outro: o toque, o olhar, o cuidado. Mas essa dimensão social vai muito além da sobrevivência física. Queremos ser vistos, ouvidos, acolhidos e incluídos. Queremos fazer parte de algo maior do que nós. Esse impulso, essencial à nossa psique, molda profundamente as escolhas que fazemos — desde o estilo de roupa que usamos até convicções religiosas, políticas ou culturais que adotamos.

Contudo, essa necessidade pode se tornar uma armadilha. O que acontece quando alguém está isolado, fragilizado emocionalmente ou em busca desesperada de sentido? Em muitos casos, o desejo legítimo de pertencimento pode ser explorado por grupos que oferecem acolhimento em troca de obediência cega. Grupos extremistas, seitas religiosas, facções criminosas e movimentos radicais sabem, talvez melhor do que ninguém, como usar o poder do pertencimento como ferramenta de controle. Neste artigo, vamos explorar como essa força psicológica opera, por que é tão poderosa e de que maneira pode levar pessoas a se envolverem com ideologias ou organizações perigosas.

A psicologia do pertencimento

O conceito de pertencimento é estudado há décadas na psicologia e nas ciências sociais. Talvez a formulação mais conhecida venha da teoria de Abraham Maslow, que incluiu a necessidade de pertencimento em sua famosa hierarquia das necessidades humanas. Segundo Maslow, depois que necessidades fisiológicas (como comida, água, abrigo) e de segurança (como estabilidade e proteção) são satisfeitas, o ser humano passa a buscar conexão emocional — amizade, amor, inclusão. Estar em grupo, portanto, não é um capricho social, mas uma necessidade psicológica básica.

Essa necessidade está presente desde a infância. Crianças pequenas se esforçam para agradar seus cuidadores, muitas vezes reprimindo emoções ou opiniões próprias para garantir aprovação. Na adolescência, o desejo de se encaixar em grupos de amigos pode se sobrepor até aos valores ensinados em casa. Esse padrão continua na vida adulta: buscamos pertencer em ambientes de trabalho, comunidades religiosas, times esportivos, fandoms, e até em tribos virtuais.

Mas o pertencimento não se limita à busca por companhia. Ele também estrutura a nossa identidade. A Teoria da Identidade Social, desenvolvida por Henri Tajfel, propõe que as pessoas constroem parte significativa de sua autoestima com base nos grupos aos quais pertencem. Essa identificação cria laços afetivos, mas também fronteiras simbólicas — o famoso “nós contra eles”. E é justamente nessa dualidade entre acolhimento e exclusão que reside o potencial perigoso de certos grupos.

O poder dos grupos

Grupos têm um poder imenso sobre o comportamento humano. Em um grupo, os indivíduos se sentem parte de algo maior do que eles mesmos. Essa ligação proporciona três pilares psicológicos essenciais: segurança emocional, identidade compartilhada e propósito coletivo. Quando essas necessidades são supridas de forma positiva, grupos tornam-se fontes de apoio e crescimento. Mas, quando essas estruturas são manipuladas, os grupos podem se transformar em ambientes opressores, coercitivos e até destrutivos.

A segurança emocional se manifesta na certeza de que há um lugar onde somos aceitos como somos. No entanto, essa aceitação muitas vezes vem acompanhada de condições não declaradas: conformidade com normas internas, lealdade ao líder ou ideologia do grupo, e disposição a rejeitar influências externas. Quando o grupo impõe limites rígidos ao pensamento ou comportamento, essa segurança se torna uma prisão emocional.

A identidade compartilhada também é um componente poderoso. Usamos os grupos para definir quem somos: “sou ativista”, “sou crente”, “sou patriota”, “sou rebelde”. Esses rótulos fornecem uma narrativa para nossas vidas, ajudando-nos a compreender nosso lugar no mundo. No entanto, a adesão irrestrita a uma identidade grupal pode levar à perda da individualidade, da reflexão crítica e da empatia por quem é diferente.

Por fim, o propósito coletivo é talvez o aspecto mais motivador. Pessoas são atraídas por causas, especialmente em momentos de crise pessoal ou social. A promessa de lutar por algo maior que si mesmo pode ser irresistível. Grupos extremistas frequentemente oferecem essa promessa com linguagem heroica, retratando seus membros como escolhidos, guerreiros ou vítimas de uma ordem injusta que precisa ser combatida.

Líderes carismáticos são especialistas em canalizar essas três dimensões. Eles sabem como criar narrativas de vitimização, despertar lealdade cega e transformar dúvidas pessoais em certezas coletivas. O grupo, então, se torna mais que uma rede de apoio: transforma-se em um universo total, onde tudo fora dele é ameaça.

Quando o pertencimento se torna perigoso

O problema não é querer pertencer. O problema surge quando o desejo de pertencimento é explorado por estruturas manipuladoras. Isso pode ocorrer de forma gradual e sutil. Poucas pessoas entram em grupos destrutivos sabendo que estão se colocando em risco. Elas são atraídas por promessas de acolhimento, sentido e identidade.

Seitas religiosas, por exemplo, muitas vezes se apresentam como famílias espirituais, onde cada membro é valorizado e cuidado. Inicialmente, oferecem escuta, apoio emocional e uma comunidade vibrante. Mas com o tempo, começam a exigir provas de lealdade: afastamento de amigos e familiares, entrega de recursos financeiros, obediência irrestrita ao líder. O caso do Templo do Povo, liderado por Jim Jones, é emblemático. O grupo começou como uma comunidade de justiça social e terminou em um suicídio coletivo de mais de 900 pessoas na Guiana, em 1978.

Grupos extremistas e radicais políticos também se aproveitam da busca por pertencimento. Jovens que se sentem excluídos, desiludidos ou injustiçados encontram nesses grupos uma narrativa poderosa: “você faz parte dos poucos que enxergam a verdade”. Eles se tornam parte de uma “elite esclarecida” que tem uma missão contra o sistema, o Estado, a sociedade corrompida. Essa lógica binária simplifica o mundo e dá à pessoa uma sensação de valor que talvez nunca tenha experimentado antes.

Facções criminosas e gangues funcionam de forma semelhante em muitos contextos. Em comunidades onde o Estado está ausente, elas se apresentam como a única forma de proteção, identidade e respeito. Jovens que crescem em contextos de pobreza extrema, violência e desagregação familiar podem ver nesses grupos a única oportunidade de reconhecimento e pertencimento. Rituais de iniciação, códigos de conduta e lealdade total reforçam o vínculo com o grupo.

A carência como porta de entrada

Nem todos são igualmente vulneráveis. A adesão a grupos perigosos frequentemente está ligada a situações de carência emocional, social ou econômica. Jovens em transição, pessoas em luto, migrantes, vítimas de violência ou abuso e indivíduos com histórico de rejeição sistemática formam perfis mais propensos ao aliciamento.

As redes sociais digitais intensificam esse risco. Plataformas como YouTube, TikTok ou fóruns online contêm espaços onde ideias extremas circulam disfarçadas de humor, opinião ou análise crítica. Algoritmos aprendem os interesses dos usuários e os expõem a conteúdo cada vez mais radical. Em poucos meses, um adolescente solitário pode passar de vítima de bullying a seguidor fervoroso de ideologias perigosas.

A escola e o ambiente universitário também podem se tornar espaços de risco quando faltam acolhimento, escuta ativa e mediação de conflitos. Estudantes que se sentem invisíveis ou humilhados tendem a buscar em grupos alternativos a validação que não encontram em seus contextos imediatos. Da mesma forma, a ausência de referências positivas e oportunidades de expressão leva muitos jovens a aderir a padrões destrutivos, que ao menos oferecem uma sensação de pertencimento.

A psicodinâmica do grupo perigoso

Do ponto de vista psicológico, os grupos perigosos operam através de mecanismos conhecidos e estudados. Um dos mais emblemáticos é o da conformidade social. O experimento de Solomon Asch, em 1951, demonstrou que indivíduos tendem a ajustar sua opinião à do grupo, mesmo quando sabem que essa opinião está errada. Isso acontece por medo da rejeição, desejo de ser aceito ou convicção de que o grupo sabe mais.

Outro fenômeno é a desindividualização. Quando a identidade pessoal é diluída no coletivo, o indivíduo perde referências internas e se permite agir de forma diferente do que faria isoladamente. O psicólogo Philip Zimbardo, no famoso Experimento da Prisão de Stanford, mostrou como pessoas comuns podem cometer atos extremos quando inseridas em contextos grupais que favorecem a perda de empatia e o ganho de poder.

Finalmente, muitos grupos perigosos operam com base em uma lógica binária e simplificadora: “nós contra eles”. O mundo é dividido entre os bons (o grupo) e os maus (os de fora). Esse dualismo reforça a coesão interna e justifica a exclusão, a violência ou o fanatismo. Qualquer tentativa de crítica interna é vista como traição, e quem abandona o grupo é tratado como inimigo.

Como prevenir: educação, inclusão e consciência crítica

Prevenir a adesão a grupos perigosos não se resume a reprimir suas manifestações. É preciso atuar sobre as causas emocionais e sociais que tornam as pessoas vulneráveis a esse tipo de atração.

  1. Educação emocional e crítica desde a infância: As escolas devem incluir programas de inteligência emocional, empatia, resolução de conflitos e pensamento crítico. Alunos preparados para reconhecer manipulação e lidar com frustrações estão menos propensos a buscar acolhimento em grupos nocivos.
  2. Projetos de inclusão social: Políticas públicas devem promover acesso a cultura, esportes, mentorias e oportunidades econômicas. Espaços comunitários fortalecem o senso de pertencimento de forma saudável e previnem o aliciamento por grupos destrutivos.
  3. Consciência digital: Programas de letramento midiático são fundamentais para que jovens aprendam a questionar informações, identificar discursos extremistas e denunciar tentativas de manipulação. Plataformas online também devem ser responsabilizadas pela moderação de conteúdo nocivo.
  4. Redes de apoio e escuta ativa: Famílias, escolas, igrejas e comunidades devem se tornar espaços de escuta genuína, onde sentimentos de exclusão possam ser acolhidos e ressignificados antes que se tornem vulnerabilidades exploradas por terceiros.

Considerações finais

O desejo de pertencimento não é uma fraqueza. É uma expressão profunda da nossa condição humana. Precisamos de grupos, de vínculos e de identidades compartilhadas para construir sentido em nossas vidas. Mas quando esse desejo encontra um terreno de fragilidade e ausência de acolhimento, pode se transformar em uma armadilha.

Mais do que combater os grupos perigosos em si, é urgente fortalecer as estruturas sociais que promovem conexões saudáveis, escuta verdadeira e senso de comunidade. Ao oferecer pertencimento sem condições, construímos uma sociedade onde ninguém precise se colocar em risco para ser aceito. E talvez esse seja o maior gesto de prevenção que podemos oferecer.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu. São Paulo: Imago, 1994.
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JANIS, Irving. Groupthink: Psychological Studies of Policy Decisions and Fiascoes. Boston: Houghton Mifflin, 1982.
MASLOW, Abraham H. Motivation and Personality. New York: Harper & Row, 1954.
TAJFEL, Henri; TURNER, John C. “An integrative theory of intergroup conflict”. In: The Social Psychology of Intergroup Relations, 1979.
FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
DUNBAR, Robin. How Many Friends Does One Person Need? London: Faber and Faber, 2010.

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Nascido em Juruaia, a famosa Capital da Lingerie em Minas Gerais, descobri minha paixão pela escrita em 2011 e desde então escrevo como um passatempo gratificante. Como criador do site Verdadeiramente.com.br, busco compartilhar minhas reflexões e perspectivas únicas sobre a vida. Meu objetivo é inspirar e desafiar as pessoas a pensar de maneira diferente, enquanto compartilho minha jornada pessoal de autoconhecimento.

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