O desamparo moderno: vazio, significado e a sedução das ideologias

O tempo do vazio

Vivemos em uma época marcada por um sentimento difuso e persistente de carência. Apesar dos avanços tecnológicos, da ampliação das liberdades individuais e do acesso sem precedentes a informação e consumo, o sujeito moderno se sente cada vez mais perdido, desconectado e angustiado. Um vazio existencial parece atravessar os discursos cotidianos, os corpos exaustos, as relações efêmeras. Esse desamparo é, muitas vezes, silenciado por uma cultura que valoriza o desempenho, a produtividade e a aparência de felicidade constante. Mas ele está lá, como uma falta fundamental que se manifesta nas compulsões modernas, nos fanatismos, nas adesões irracionais a religiões, ídolos e ideologias que prometem sentido à vida.

Este artigo se propõe a investigar as origens, manifestações e consequências desse desamparo moderno, buscando compreender por que ele se tornou tão difuso e perigoso na contemporaneidade.

1. As raízes do desamparo: da modernidade à pós-modernidade

Para compreender a sensação de vazio que atravessa a subjetividade contemporânea, é necessário voltar às transformações profundas que marcaram a passagem da tradição à modernidade. O colapso de estruturas simbólicas estáveis e a dissolução de formas coletivas de pertencimento criaram um terreno fértil para a insegurança existencial. Nesta seção, analisamos as rupturas históricas e culturais que prepararam o terreno para o mal-estar atual.

a) A perda das estruturas tradicionais

Historicamente, o sentido da vida era sustentado por estruturas sólidas como a religião, a família, a tradição e a comunidade. O indivíduo nascia em um mundo mais ou menos estável, com papéis sociais definidos e um horizonte simbólico compartilhado. A modernidade, por outro lado, trouxe a emancipação do sujeito. Com ela, vieram a razão, a ciência, o progresso e a autonomia pessoal. Mas também veio o isolamento. A dissolução das antigas seguranças abriu espaço para uma liberdade vertiginosa, sem guias nem garantias. Anthony Giddens fala em “insegurança ontológica” para designar esse sentimento básico de instabilidade que caracteriza a vida moderna.

Essa perda, no entanto, não deve ser romantizada nem revertida com apelos regressivos. A crítica aqui não é à liberdade conquistada, mas à ausência de suporte simbólico para habitá-la sem colapsar. A dissolução das estruturas tradicionais não é, por si só, negativa; o problema é que ela não foi acompanhada de novas formas coletivas de amparo e elaboração subjetiva.

b) Modernidade líquida e insegurança ontológica

Zygmunt Bauman aprofunda essa análise ao cunhar o conceito de “modernidade líquida”. Vivemos em um mundo onde tudo é transitório: relações, trabalhos, identidades. O que era duradouro se tornou descartável. O indivíduo precisa se reinventar o tempo todo para não se tornar obsoleto. Isso gera ansiedade, sensação de inadequação e uma constante comparação com os outros. A liberdade que deveria ser fonte de realização se transforma em angústia.

2. O sujeito fragmentado: psicanálise e neurose contemporânea

Se a modernidade dissolveu as estruturas externas de sentido, é no interior do sujeito que essa ausência repercute com mais força. Sem os referenciais simbólicos tradicionais, o indivíduo contemporâneo se vê confrontado com a tarefa solitária de sustentar sua própria identidade e justificar sua existência. A psicanálise oferece ferramentas cruciais para entender esse cenário, ao reconhecer que a falta — longe de ser um desvio — é constitutiva da subjetividade. No entanto, em uma cultura que rejeita a ausência, o sujeito é pressionado a tamponar essa falta por meio de imagens ideais, performances e compulsões. Nesta seção, analisamos como o desamparo se manifesta psiquicamente na contemporaneidade.

a) O vazio existencial e o narcisismo de massa

A psicanálise, especialmente em Lacan, ensina que o sujeito é constituído por uma falta estrutural. Nunca somos inteiros. Sempre nos falta algo. Essa condição, porém, se torna mais evidente em uma cultura que promete completude o tempo todo. A publicidade, as redes sociais e o discurso meritocrático constroem uma imagem de felicidade e sucesso inalcançável. O resultado é um narcisismo de massa: todos buscam se tornar o “eu ideal”, moldado pelo olhar do outro.

b) Angústia, tédio e compulsão por sentido

O tédio existencial, a sensação de que nada é suficiente, leva o sujeito a buscar compulsivamente algum tipo de preenchimento. Seja através do consumo, da performance profissional, da exposição digital ou da busca espiritual. Mas essas tentativas geralmente fracassam, pois ignoram a natureza estrutural da falta. Como diz Slavoj Žižek, o desejo humano é desejo do desejo: nunca se satisfaz completamente, pois deseja algo que sempre escapa.

c) Relações líquidas e o medo de sentir

O desamparo moderno não se expressa apenas na esfera das grandes instituições; ele também penetra silenciosamente nas relações humanas mais íntimas. Em uma cultura que valoriza a autonomia, a performance e o controle emocional, o medo de se envolver afetivamente torna-se um sintoma comum. Relações exigem vulnerabilidade, e vulnerabilidade implica risco — de rejeição, de dor, de frustração. Para muitos, é preferível manter tudo na superfície.

As redes sociais e os aplicativos de relacionamento acentuam essa lógica. O outro torna-se descartável, parte de um cardápio infinito de possibilidades. As conexões se tornam episódicas, substituíveis, regidas por critérios de afinidade instantânea e conveniência emocional. Esse retraimento afetivo, embora compreensível diante do excesso de estímulos e da insegurança subjetiva, gera um círculo vicioso: quanto mais fugimos do risco de nos conectar, mais solitários nos tornamos — e mais fundo se cava o vazio.

Essa solidão relacional enfraquece a empatia e favorece o ressentimento. O ser humano, ao perder a capacidade de se relacionar com alteridade verdadeira, tende a buscar bodes expiatórios para justificar seu sofrimento. Assim, o afastamento emocional pode alimentar visões de mundo intolerantes, maniqueístas, que oferecem pertencimento sem exigir abertura. Em contextos assim, líderes e doutrinas que prometem sentido absoluto — sem responsabilização subjetiva — encontram terreno fértil. O sujeito, incapaz de lidar com sua própria fragilidade, transfere a culpa para o outro: o diferente, o estranho, o fora do padrão.

3. A busca por preenchimento: do consumo às crenças totalizantes

Diante do desamparo, o sujeito moderno não permanece passivo. Pelo contrário: ele busca incansavelmente meios de preenchimento, de sentido, de alívio. No entanto, essas buscas ocorrem em uma paisagem cultural onde os caminhos oferecidos são, em sua maioria, superficiais, imediatistas ou totalizantes. O vazio estrutural e existencial é frequentemente abordado por meio de promessas ilusórias de completude — seja através do consumo, da adesão religiosa, de vínculos ideológicos ou de experiências intensas. A cada tentativa frustrada de preenchimento, o desespero pode aumentar, abrindo espaço para soluções mais radicais ou autoritárias. O desejo legítimo de sentido é então sequestrado por lógicas que, em vez de acolher a falta, tentam negá-la com fórmulas prontas. É nesse cenário que o mercado, a religião e a política passam a oferecer não apenas bens ou crenças, mas fantasias de totalidade.

a) A lógica do mercado: preencher o vazio com coisas

Uma das primeiras promessas de preenchimento que se apresenta é a do consumo. O capitalismo contemporâneo aprendeu a explorar o vazio existencial como força motriz: ele transforma a falta em desejo e o desejo em mercadoria. Somos constantemente expostos a objetos, serviços e experiências que prometem nos completar — um novo celular, uma viagem transformadora, um estilo de vida. A felicidade parece sempre a uma compra de distância. No entanto, como apontam Theodor Adorno e Herbert Marcuse, essa lógica apenas perpetua o vazio: cria-se um ciclo infinito de carência e gratificação, no qual cada satisfação é imediatamente anulada por uma nova sensação de falta. O desejo, capturado pela mercadoria, perde sua potência criativa e torna-se compulsivo, repetitivo, vazio em si.

b) Religiões fundamentalistas e ideologias extremistas como refúgios

Quando nem o consumo, nem as crenças moderadas parecem dar conta da angústia existencial, abre-se espaço para soluções mais radicais — aquelas que prometem não apenas sentido, mas também redenção total. Em contextos de desamparo profundo, essas narrativas ganham força justamente por sua clareza simplificadora: oferecem uma explicação total do mundo, uma comunidade de pertencimento e, muitas vezes, um inimigo a ser combatido. Fundamentalismos religiosos e ideologias extremistas capturam o desejo legítimo por estabilidade e o convertem em obediência cega. Ao invés de acolher a fragilidade humana, apontam para sua negação: prometem segurança plena, pureza moral e identidade homogênea. Nesse processo, o sujeito é liberado do peso de sua própria responsabilidade e autorizado a culpar o outro por tudo o que não se encaixa — uma dinâmica perigosa que será aprofundada na próxima seção.

4. O perigo da promessa de sentido absoluto

Antes de entrarmos nas formas contemporâneas de extremismo, é importante lembrar que esse mecanismo não é novo. O século XX oferece trágicos exemplos de como o desamparo coletivo pode ser manipulado por forças políticas. A ascensão do nazismo na Alemanha, por exemplo, foi precedida por um profundo colapso econômico, moral e simbólico após a Primeira Guerra Mundial. O sentimento de humilhação, perda e insegurança ontológica foi canalizado por uma narrativa totalitária que prometia resgate, grandeza e ordem. A lógica do bode expiatório — neste caso, os judeus — foi essencial para mobilizar afetos e justificar atrocidades. O mesmo padrão, em diferentes roupagens, se repete ciclicamente em contextos de crise.

a) Ideologias perversas e a ilusão do todo

Hannah Arendt mostrou como o totalitarismo é, em parte, uma resposta ao vazio. Quando a sociedade perde seus referenciais, cresce o desejo por uma narrativa total, absoluta, que explique tudo. O indivíduo, em desespero, abdica de sua autonomia para se fundir a algo maior: a pátria, a raça, o partido, a religião. Mas essa fusão tem um custo: o pensamento crítico, a pluralidade, a liberdade.

b) Fanatismo, intolerância e violência

O problema é que a promessa de sentido absoluto muitas vezes exige a anulação do outro. O diferente se torna ameaça. A dúvida é vista como traição. Assim nascem os fanatismos: religiosos, ideológicos, nacionalistas. O fanático não tolera a existência de outras formas de viver, porque elas desestabilizam sua crença. E por isso recorre à violência simbólica ou física.

c) O bode expiatório e a política do ódio

Ao longo da história, momentos de crise existencial e social costumam gerar a necessidade de encontrar culpados. René Girard chamou esse fenômeno de “mecanismo do bode expiatório”: quando uma sociedade em conflito projeta sua angústia sobre um grupo minoritário, atribuindo-lhe a responsabilidade por seus males. Na modernidade, isso se atualiza de maneira perversa através do extremismo ideológico, político ou religioso.

Grupos minoritários — como imigrantes, religiões não hegemônicas, populações LGBTQIA+, judeus, muçulmanos, entre outros — tornam-se alvos fáceis. A violência contra eles é justificada em nome de uma “pureza” cultural, moral ou nacional. A promessa de sentido absoluto se transforma também em promessa de limpeza simbólica: eliminar o “outro” para restaurar uma ilusória ordem original.

Essa retórica é frequentemente instrumentalizada por líderes políticos em busca de poder. Atacar minorias é eficaz: são grupos que, por estarem à margem, têm pouca capacidade de defesa institucional. Além disso, a maioria silenciosa — confusa, desamparada — encontra conforto em narrativas que simplificam o mundo e identificam vilões claros. Assim, o discurso de ódio se disfarça de salvação.

Importa destacar que essa dinâmica não é exclusiva de um espectro ideológico. Trata-se de um mecanismo humano recorrente em tempos de incerteza. Tanto regimes de extrema direita quanto de extrema esquerda, assim como fundamentalismos religiosos, recorrem ao mesmo expediente: identificar um inimigo comum para unir seus seguidores em torno de uma causa redentora.

d) Os algoritmos das redes sociais e as bolhas virtuais

Além disso, o ambiente digital — particularmente as redes sociais — funciona como um catalisador desses processos. Os algoritmos de recomendação, movidos por lógicas de engajamento e lucro, tendem a amplificar discursos polarizadores e sensacionalistas. O sujeito desamparado, em busca de pertencimento e explicações simples, é rapidamente capturado por bolhas ideológicas que reforçam seus medos e preconceitos. A radicalização, nesses casos, ocorre não apenas pela persuasão racional, mas por um acúmulo emocional contínuo de afetos negativos, cultivados dia após dia.

Se o desamparo pode ser manipulado para alimentar o ódio, ele também pode ser cultivado para sustentar uma ética mais generosa. A questão não é eliminá-lo, mas aprender a habitá-lo sem sucumbir à sedução das respostas fáceis.

5. Caminhos possíveis: como habitar o desamparo?

Diante desse panorama de desamparo estrutural, tentativas de preenchimento fracassadas e promessas perigosas de sentido absoluto, resta uma pergunta fundamental: como viver com o vazio sem ser destruído por ele? Esta seção final não busca oferecer fórmulas, mas caminhos. Caminhos frágeis, provisórios e éticos para lidar com a falta sem negá-la. Em vez de fuga, negação ou idealização, propomos o acolhimento da condição humana em sua precariedade — e a construção de respostas simbólicas e coletivas à ausência de garantias. Porque talvez seja justamente na aceitação da falta que resida a potência de uma vida mais verdadeira.

a) Aceitar a falta como condição humana

Friedrich Nietzsche propõe o amor fati: amar o destino, aceitar a vida como ela é, sem ilusões de sentido transcendente. Albert Camus, por sua vez, fala no absurdo: a vida é sem sentido, mas é possível encontrar dignidade na resistência. Viver bem não é superar o vazio, mas aprender a caminhar com ele. A liberdade está em construir sentidos provisórios, pessoais, partilhados.

b) A ética do cuidado e da escuta

Se a falta é estrutural, o que resta é o cuidado. Cuidar do outro, escutar o sofrimento, construir laços autênticos. A clínica psicanalítica, a arte, a amizade e a educação são espaços onde a falta pode ser simbolizada e partilhada. Não se trata de eliminar o desamparo, mas de lhe dar forma, linguagem e companhia.

6. Conclusão: viver com o vazio sem fugir dele

O desamparo moderno é real, profundo e inquietante. Ele não se resolve com consumo, com promessas de salvação nem com doutrinas absolutas. Ao contrário, essas soluções fáceis costumam ampliar o sofrimento e gerar violência. A tarefa mais difícil é a mais necessária: aprender a habitar o vazio com coragem, sem negar sua existência, sem buscar preenchimentos ilusórios. Talvez o verdadeiro sentido da vida esteja justamente na capacidade de criar, com os outros, pequenas formas de sentido, fragmentos de beleza, gestos de cuidado. Viver sem garantias, mas com dignidade. Eis o desafio do nosso tempo.

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Referências:

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Record, 2004.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Magda Lopes. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
GIRARD, René. O bode expiatório. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Paulus, 2004.
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2003.

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Nascido em Juruaia, a famosa Capital da Lingerie em Minas Gerais, descobri minha paixão pela escrita em 2011 e desde então escrevo como um passatempo gratificante. Como criador do site Verdadeiramente.com.br, busco compartilhar minhas reflexões e perspectivas únicas sobre a vida. Meu objetivo é inspirar e desafiar as pessoas a pensar de maneira diferente, enquanto compartilho minha jornada pessoal de autoconhecimento.

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