Hoje o céu amanheceu errado
Hoje o céu amanheceu errado.
Não sei explicar.
O azul parecia mais raso.
Ou talvez mais grosso.
Como uma tinta velha, empelotada nas bordas do horizonte.
Há três dias que o vento sopra de um lugar que não existe no mapa.
Traz cheiro de coisa morta misturado com alecrim queimando.
É um cheiro que não deveria existir.
Meus ossos doem como se pressentissem um acontecimento.
Não sei qual.
Mas algo se move.
Algo respira no fundo do que não vejo.
Pássaros não passaram hoje.
Nenhum.
Nem sombra.
Nem canto.
Tentei sair.
As portas estavam ali, totalmente abertas.
Mas meu corpo não atravessa mais vãos.
Me tornei coisa densa demais pra atravessar espaços.
Minhas mãos amanheceram riscadas.
Linhas que não lembro de desenhar.
Umas tortas, outras em espiral.
Algumas pareciam formigas.
Ou marcas que só a terra entende.
Sonhei com uma mulher sem rosto.
Ela me entregou um objeto que não reconheci,
e então disse:
“Isso é sua última palavra.”
E sumiu.
Não sei se é metáfora.
Não sei se é praga.
Não sei se é só mais uma febre.
O teto pinga um líquido que não é água.
Não é bem nada.
Não tem cheiro, não tem gosto, não tem cor.
Mas corrói.
Corrói tudo o que toca.
Me sentei no chão.
Rabisquei na parede:
“Se alguém encontrar esse corpo, finja que não viu.”
Há coisas aqui.
Não sei se são fantasmas, se são pensamentos, se sou eu mesmo em outros estados.
Às vezes escuto uma voz grossa, vindo de dentro da parede.
Outras, um murmúrio que só diz uma palavra: fica.
Não sei se é um conselho.
Não sei se é uma ameaça.
Meu corpo pede fuga.
Minha alma pede sumiço.
E há um terceiro dentro de mim que não pede nada.
Só observa.
Totalmente calado.
Totalmente imóvel.
Feito uma pedra esquecida no fundo do rio.
Escrevo isso não pra ser lido.
Nem pra ser entendido.
Escrevo porque se eu não escrevo, eu vazo.
Escorro.
Desapareço nas frestas do meu próprio corpo.
Amanhã talvez eu acorde sendo outro.
Ou nem acorde.
Ou acorde sendo coisa nenhuma.
De qualquer forma, deixo aqui esse resto.
Esse pedaço.
Esse ruído.
Esse rastro que talvez nem seja meu.
— Antônio Reis